Processo Condor: em julgamento na Itália um oficial brasileiro pelo assassinato de um ítalo-argentino

Atila Rohrsetzer, militar brasileiro que, em 1980, era chefe da Divisão Central de Inteligência do Rio Grande do Sul

Ficha pessoal de Lorenzo Vinas Gigli (arquivo da comissão Nacional da Verdade – Brasil)
Ficha pessoal de Lorenzo Vinas Gigli (arquivo da comissão Nacional da Verdade – Brasil)

Foi o governo italiano, presidido por Enrico Letta,  que se constituiu como parte civil no processo sobre os crimes cometidos pelas ditaduras sul americanas na segunda metade do século passado: o chamado “Plano Condor” com o qual  Argentina,  Brasil, Chile, Bolívia, Paraguay e Uruguay coordenaram uma estratégia comum de dura repressão em confronto a qualquer forma de oposição aos regimes militares.

por Fabio Porta (*)

Atila Rohrsetzer, militar brasileiro que, em 1980, era chefe da Divisão Central de Inteligência do Rio Grande do Sul, poderá ser condenado nas próximas semanas pelo sequestro e o assassinato do ítalo-argentino Lorenzo Vinas Gigli.

Gigli tinha na época 25 anos e, há vinte dias, havia se tornado pai de uma menina nascida na Argentina; em 26 de junho de 1980 foi preso na fronteira brasileira enquanto tentava, de ônibus, vir para o Brasil para depois fugir para a Itália com a família, que o encontraria em seguida.

Claudia Olga Allegrini com a foto do Marido Lorenzo Vinas em mãos (foto Silvina Frydlewsky)
Claudia Olga Allegrini com a foto do Marido Lorenzo Vinas em mãos (foto Silvina Frydlewsky)

Buenos Aires, 23 de março de 2021
Reportagem fotográfica de Claudia Olga Romana Allegrin no bairro portenho de Villa Ortúzar.
Fotos: Silvina Frydlewsky / El Pais

Após quarenta anos, graças a um processo aberto pela justiça italiana sobre os crimes de lesa humanidade (e, portanto, imprescritíveis) que envolveu diversos cidadãos italianos residentes na América do Sul, poderá ser julgado e condenado pela primeira vez um crime cometido pela ditadura brasileira. Atila Rohrsetzer, que hoje tem 89 anos e vive em Florianópolis, no Estado brasileiro de Santa Catarina, é acusado da prisão, da tortura, do assassinato e do ocultamento do cadáver de Lorenzo Vinas Gigli.

Durante o processo na Itália foi escutada como testemunha Silvia Noemi Tolchinsky, provavelmente a última pessoa a ter encontrado Gigli com vida.  Os dois estavam no centro de detenção clandestino do exército argentino “Campo de Mayo”, em Buenos Aiares; Gigli, segundo Tolchinsky, tinha consigo uma foto da filha e disse ter sido preso no Brasil três meses antes. Após semanas de tortura, o ítalo-argentino deixou o centro de detenção sem deixar qualquer registro de sua presença, provavelmente transportado em um dos muitos “vôos da morte” pelo Rio da Prata, prática comum da ditadura argentina daquele período.

O julgamento contra Rohrsetzer é somente um dos muitos casos ao centro do processo aberto na Itália em 10 de outubro de 2013; poucos dias antes, respondente ao apelo de associações da sociedade civil e de uma carta minha escrita como parlamentar eleito na América Meridional, bem como Presidente do Comitê para os Italianos no Mundo da Câmara dos Deputados, o Presidente do Conselho, Enrico Letta, havia formalmente determinado a constituição do governo italiano como parte civil  no processo.

O número total de denunciados era 146, dos quais 4 brasileiros; desses, trinta e três foram submetidos a julgamento. Oito ex Presidentes e militares sul americanos foram condenados à prisão perpétua. No processo Gigli, derivado daquele mais amplo sobre a operação Condor, foram quatro os militares brasileiros acusados: João Osvaldo Leivas Job, Carlos Alberto Ponzi, Marco Aurelio da Silva Reis e Atila Rohrsetzer. Sendo este último o único dentre os quatro ainda vivo, ele será julgado pela morte do ítalo- argentino Gigli. 

Rohrsetzer é mencionado três vezes no relatório final da “Comissão Nacional da Verdade” constituída no Brasil em 2012 para investigar os crimes cometidos durante a ditadura; atribuídos a ele uma série de crimes contra pelo menos oito pessoas durante a sua carreira como chefe da estrutura repressiva criada pelo regime militar da época.

A esposa de Lorenzo Vinas Gigli, Olga Romana Allegrini, espera há quarenta anos um ato de justiça em relação ao atroz crime cometido contra o marido. No último mês de janeiro, o jornalista brasileiro Marcelo Godoy, foi ouvido à distância como testemunha no processo. Em 2007, publicou no jornal “ O Estado de São Paulo” uma entrevista com o General da reserva Agnaldo Del Nero Augusto, na qual o militar admitia a participação do Brasil na operação “Condor” e o envolvimento do governo militar no sequestro de Gigli: “Atila Rohrsetzer fazia parte da cadeia hierárquica da estrutura da repressão política da época e o órgão que ele comandava coordenava a repressão no Rio Grande do Sul.”

Ainda segundo Godoy, o processo do “Plano Condor” na Itália é uma questão de direito internacional: “A Itália tem todo o direito de julgar os autores do assassinato de seus compatriotas que não foram julgados em seus Países. Não há qualquer obrigação de obedecer a “Lei de Anistia” brasileira nem de reconhece-la”.

O grande valor desse julgamento está exatamente no fato de que essa poderia ser a primeira condenação de um brasileiro por crimes cometidos durante o regime militar; ainda que seja improvável que o Brasil aceitará o eventual pedido de extradição do acusado, o valor simbólico desse processo permanece, de qualquer maneira, muito forte, marcando de fato o fim da impunidade dos atos cometidos pela ditadura naquele período. Apesar de o Estado Brasileiro ter no passado reconhecido esses delitos e muitas vítimas tenham sido indenizadas no âmbito civil, nunca existiu, na realidade, uma condenação contra tais crimes. E essa sentença seria também um aviso a todos aqueles que, a começar pelo Presidente da República, fazem ainda hoje apologia ao regime militar.

(*) Coordenador do PD da América do Sul, deputado de 2008 a 2018

Buenos Aires, 23 de março de 2021
Reportagem fotográfica de Claudia Olga Romana Allegrin no bairro portenho de Villa Ortúzar.
Fotos: Silvina Frydlewsky / El Pais

Fonte: gente d italia

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